terça-feira, 31 de maio de 2016

Gonçaly Hills de Talentos – Maria Domícia

Quem foi que disse que São Gonçalo é uma cidade pobre? O maior tesouro que uma cidade pode ter é a sua gente. A nossa, é uma “Beverly Hills” de talentos. Nossa gente, não está nem ai para mansões luxuosas com carrões na garagem e o que querem mesmo é o mínimo, principalmente de respeito. Querem educação para seus filhos, hospitais de qualidade para quando adoecerem e segurança para que ninguém tire o seu direito de ir e vir ou levarem-lhe o pouco que tem. Educação, saúde e segurança, a receitinha básica para melhoria da qualidade de vida de qualquer cidade, São Gonçalo, ainda carece muito dessa trinca. Se nem no essencial temos investimentos, imagine na cultura? O exemplo é a nossa Fazenda Colubandê que está aí “à Deus dará”.
Na contramão de quem governa, o nosso povo não cruza os braços e vai à luta conquistando seu espaço e com talento divulga nossa cidade para o Brasil. Um exemplo é cantora lírica gonçalense Maria Domícia. Sim, isso mesmo, eu disse cantora lírica. Podemos nos orgulhar de ter tido uma das mais belas e afinadas vozes do nosso país.
Maria Domícia nasceu no bairro do Patronato e estudou até a 3º série na Escola Estadual Porto da Madama, e concluiu o Primário no grupo escolar Benjamim Constant no Barreto em Niterói. Fez o curso Normal no Liceu Nilo Peçanha. Começou a se destacar na música quando se formou em canto sob a orientação da professora e cantora lírica Elizabeth do Prado Esberard no Conservatório Brasileiro de Musica.
Domícia foi professora do ensino médio nos cursos de: Teoria de Solfejo, Canto Lírico, Musica Sacra, Educação Musical, História da Música, Regência, Musica Contemporânea e outros.
Como cantora participou de várias atividades musicais. Festivais de Inverno realizados na cidade mineira de Ouro Preto, IV Centenário da Cidade de Niterói em 22 de novembro de 1973, vários recitais, como: Colégio Santa Úrsula, Teatro Municipal de Niterói, Instituto Cultural Brasil-Alemanha. Na década de 70 participou da “Barca Cultural” organizada por Paschoal Carlos Magno e viajou mais de 50 cidades brasileiras encantando com seu vozerão. Mas foi a cidade de Terezina, no Piauí, que vivenciou de perto a potência da voz de Domícia. Enquanto arrebentava em mais uma de suas apresentações , Domícia entoou uma nota que fez com que um dos cristais da janela do teatro se quebrasse e quase feriu um violinista.
Uma gravação caseira de Domícia interpretando “Pergunte aos Canaviais”, de Capiba, chegou aos ouvidos de Flávio Cavalcante, um dos mais badalados apresentadores de programa de auditório na década de 70. Ao ouvi-la cantar, Flávio a confunde com a cantora lírica peruana Yma Sumac e com espanto de ter interpretado tão bem uma letra em português, solta: “- Yma Sumac cantando em português. Como é possível?”. Passado o desconforto da comparação, Flavio fez questão de conhecê-la. Três dias depois, Domícia cantou ao vivo na residência de Flávio Cavalcante, que se encantou com a nossa cantora e disse: “– Há uma razão para essa voz, pois seu nome carrega o som de três notas musicais – o DO o MI e o SI – Do –mi – ci – a.”
Maria Domícia faleceu em 2007 e ocupou a 24º cadeira da Academia Gonçalense de Letras, Artes e Ciências (AGLAC).
Domícia foi só mais uma joia que ajudou a enriquecer esse baú de tesouros chamado São Gonçalo. Uma cidade tão rica de talentos e pobre de investimentos.
POBRE RICA CIDADE DE SÃO GONÇALO.
Texto publicado em 12 de agosto de 2015 no Nosso Jornal.

terça-feira, 24 de maio de 2016

A Biblioteca do Catarina

Antes de seguir o corredor em direção ao quarto, dá uma olhadinha no relógio de parede que marca, religiosamente, cinco minutos para vinte horas. Não adianta lutar contra. É certo que será vencido pelo sono, lembrando o quanto estaria aceso naquele mesmo horário em sua juventude. O tempo é realmente um adversário invencível, que se utiliza de armas das quais não temos escudos para nos proteger. Com os dedos ásperos de anos e anos de trabalho duro como pedreiro, desliga o interruptor da luz do corredor e com passos curtos e cansados caminha para o quarto.
Senta-se na beirada do colchão. Mas antes de se deitar, seus olhos encontram na parede misturada àquele mundo de livros, incluindo a velha enciclopédia Barça de seis volumes onde tudo começou, em 2004. Imediatamente, lembrou-se de Maria da Penha, sua mais que esposa, amiga e companheira, que com ele começou aquele sonho, inclusive, abdicando de seu próprio quarto para que as crianças da comunidade tivessem acesso aos livros e conhecimento.
O rosto de Maria da Penha estava nítido em sua memória. Perdera recentemente, e com ela, o ânimo de continuar aquele nobre trabalho. Lembra-se como se fosse hoje, quando voltou de uma viagem do Recife, com sua inseparável bike, e juntos sentaram para idealizar a biblioteca. Aquela velha enciclopédia de 10 anos de idade foi a primeira a ir para estante.
O acervo da biblioteca foi crescendo cada vez mais com doações de amigos. Aquele personagem feito do sabugo de milho criado por Monteiro Lobato, que devorava livros e fazia dele um intelectual, sempre passeou pela sua imaginação. Com aprovação de sua esposa, foi com o nome desse personagem que nascia a Biblioteca Comunitária Visconde de Sabugosa. Na época, a biblioteca mais próxima era a do Centro Cultural Joaquim Lavoura, e não se podia deixar as crianças da comunidade andar tanto para que pudessem estudar.

Um sinal de esperança

Os tempos são outros. Com muitas dificuldades, já não tem mais sua esposa para ajudá-lo naquela batalha. A biblioteca sobrevive um dia após o outro, sem nenhuma ajuda para mantê-la de pé. E quando estava ali, sentado na cama, questionando-se se valeria mesmo a pena continuar aquela luta, foi interrompido por batidas na porta.
Levantou-se pensando em quem poderia ser naquela hora da noite. Caminhou pelo corredor e  reacedeu o interruptor da luz.
– Já vou!
Abrindo uma pequena fresta na porta, viu uma jovem senhora e uma menina que não passava dos 15 anos. Jardim Catarina pode não ser o maior bairro em extensão de São Gonçalo, mais leva o título de maior loteamento da América Latina, com cerca de 20 mil domicílios. Embora conhecesse muita gente no bairro, aquelas duas, nunca vira antes.
– Olá, o senhor deve ser Carlos Luiz Leite. Meu nome é Sueli e essa é minha filha Raquel. Somos daqui de Jardim Catarina e precisamos muito da sua ajuda.
Carlos abre totalmente a porta e com um gesto as convidam para entrar.
– Senhor Carlos, sei que esta um pouco tarde, mas esse é o horário que chego do meu serviço no Rio e é a única hora que encontro para me dedicar à minha filha e acompanhar seus estudos. Notei que estava aflita, por causa de um trabalho de ciências que vale ponto para amanhã. Falei com ela que poderia vir à biblioteca no horário de funcionamento antes deu chegar, mas o senhor sabe como são as crianças.
– Não se preocupe Sueli, a nossa casa está sempre aberta para quem tem sede de conhecimento. E não há hora marcada para adquirirmos conhecimentos. Por falar nisso, a Raquel já sabe o que quer ser quando crescer? Carlos pergunta procurando os olhos da menina.
– Veterinária. A menina timidamente responde.
– Que bom! Vou ter quem cuide de mim quando ficar doente. Responde Carlos, arrancando gargalhadas das duas.
Conversaram ainda por meia hora, enquanto Carlos separava alguns livros de ciências da sétima série. Falou quanto era gratificante ser parado nas ruas da comunidade por pessoas que queriam agradecer por seus filhos terem passado de série, entrado na faculdade ou aprovados em um concurso por conta dos livros da biblioteca.
– Esses livros aqui com certeza vão ajudar a futura veterinária no seu trabalho de amanhã.
– Muito obrigada mais uma vez, senhor Carlos. Fala Sueli, enquanto caminham até a porta.
Na porta, Carlos observa Sueli pegar sua filha em uma das mãos, enquanto na outra segura os livros, caminhando de volta para casa. Menos de cinco passos, Sueli volta-se para Carlos com um olhar de agradecimento e diz:
– Vale a pena!
– Hã?
Aquelas palavras bateram diretamente no coração de Carlos. Era a resposta para o seu questionamento enquanto estava sentado na cama. Um anjo colocara na boca daquela mulher a resposta para manter viva a biblioteca. Sendo forte como sempre foi, tinha a certeza que Maria da Penha responderia com a mesma frase. Valeu e sempre valerá a pena.
– Sim, senhor Carlos. Vale a pena para todos nós da comunidade poder contar com a sua generosidade. Saí da minha casa, vim até aqui em sua porta a essa hora da noite e ainda pude contar com a sua atenção, seus livros, que darão um futuro melhor à minha filha.
Por um momento, Carlos esquece de todo cansaço. Apenas acompanha com os olhos as duas sumirem nas ruas de Jardim Catarina. Mas antes de bater a porta, estica o pescoço e olha para cima em uma sensação agradável de estar fazendo a coisa certa, enquanto seus olhos percorrem o letreiro que diz “Biblioteca Comunitária Visconde de Sabugosa”.

Curiosidades:

A Biblioteca Visconde de Sabugosa fica na Rua São José do Ouro, 28 no Jardim Catarina e funciona de segunda a sexta-feira de 9 às 16 horas.
Carlos Luiz Leite participou do quadro “Agora ou Nunca” do programa Caldeirão do Hulk, na Rede Globo. Não conseguiu o valor de 10 mil reais do programa, mas arrecadou o mesmo valor em doações que foram investidos na biblioteca. Um dos famosos que doaram para a biblioteca foi à atriz global Carolina Dieckmann.
Hoje, Carlos Luiz Leite conta com a ajuda da estudante Viviane Nascimento, 20 anos, que cuida da biblioteca quando não está presente.
Texto publicado em 8 de junho de 2015 no Sim São Gonçalo.

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