sábado, 15 de dezembro de 2018

O Bom Velhinho no Hospital das Freiras

Foto de Matheus Graciano (Sim São Gonçalo)
O espírito natalino já chega desde o primeiro dia. A cada dia que se aproxima do dia 24, fica mais fervoroso. Basta olhar para os lados e se deparar com árvores de Natal, guirlandas, presépios, estrelas natalinas, Papais Noéis de todos os tipos e tamanhos. À noite, a lembrança de que estamos no mês do Natal fica por conta dos zilhões de pisca-piscas que enfeitam a cidade.

De onde sai tantos enfeites natalinos MADE IN CHINA espalhados pela cidade?

Não precisa nem pensar muito na resposta. Existem muitos mercados populares espalhados pela cidade. E nada se compara a Alcântara. Em qualquer mês do ano o lugar já é um caldeirão de gente saindo pelo ladrão. Em dezembro a coisa piora e só os fortes sobrevivem. Até mesmo o bom velhinho, acostumado com a correria de Natal, não aguentou o tumulto e piripaqueou na famosa rua da feira.
Eu até gosto de andar por Alcântara. Gosto de gente, mas como no comercial de cerveja que me lembra de beber com moderação, é isso que faço quando chega nessa data. Mas tem horas que não podemos escapar de uma visita forçada. Aí não tem jeito, temos que respirar os ares do Alcântara.
Por sinal, dependendo da hora e do lugar, não são nada agradáveis. Atire a primeira pedra, quem nunca sentiu o cheiro de podre na Estrada Raul Veiga entre o Extra e o Supermarket?
Foi em uma dessas minhas visitas forçadas que tive uma experiência bem inusitada.

Quando Papai Noel quase infartou

O sol torrava tanto a cabeça que me sentia um peru de Natal, só esperando ser servido. Nem mesmo a sombra do viaduto de Alcântara aliviava o calorão. Enfim, tinha que cumprir a missão. Lá fui, em direção à rua da feira, mas sem antes dar aquela espiadela para ver que horas eram no prédio de relógio.
Faltava pouco para as 13 horas no horário de verão. Gente para todo lado. Com cuidado, vou me esquivando de um e de outro. No meio do falatório irreconhecível, um som quase rompe meus tímpanos. – “Chip da “Craro”, da Tim, da Vivo, e da Oooiii.” – Quando consigo fugir da bendita gordinha berradeira, já vem um me empurrando um papelzinho. Penso comigo mesmo em não pegá-lo, mas quando fixo os olhos no sujeito, a cara de poucos amigos me faz mudar de ideia. Pra mostrar que sou educado, dou aquela espiadela no papel que dizia em letras garrafas “Compro Ouro”. Eu não tenho, mas mesmo que tivesse não seria para ele que venderia.
Poucos passos adiante, vejo uma aglomeração de gente formando um círculo. Embora, aglomeração de gente em Alcântara seja de fato um pleonasmo, era uma roda de pessoas falando alto alguns com expressões de desespero. Chego perto e consigo ver entre as pernas daquele muro humano  um saco vermelho bem chamativo. Curioso, levantando a cabeça entre a multidão para tentar ver o que estava no interior do círculo pergunto o rapaz do meu lado.
– O que esta acontecendo aqui?
– O Papai Noel esta no chão desacordado.
– Caiu do trenó?
Ele olhou com uma cara que, nitidamente, percebi que não gostou da minha piadinha.
Também não era hora desse tipo de piada. Então, como alguém que quer se redimir, afasto um e outro com os braços e chego ao meio da roda. O que vejo é o bom velhinho apagadão no meio da roda e uma senhora que se dizia ter curso de enfermagem o abanando tanto que, se a barba não fosse de verdade, já teria o voado do rosto.
– Você sabe onde é o Hospital das Freiras?
A mulher nem me deu tempo de respirar.
– Sim, sei sim.
-Ótimo, me ajuda a levar esse senhor para lá?
– Claro!
Eu não podia dizer não para o Papai Noel.
Paramos o primeiro carro que passava por perto, a mulher sentou no banco de trás. Eu e mais um delicadamente acomodamos o barbudo de uma forma que as pernas dela o servissem como travesseiro.
– E o saco? – Ainda fora do carro perguntei para mulher.
– Que saco?
-Dele!
– Pega logo esse saco e entra no carro! Não temos tempo a perder.
Sentei no banco do carona e com o saco na mão dei as coordenadas.
– Toca para o Hospital das Freiras. Fica na Estrada do Pacheco ali na Lagoinha.
Tivemos sorte de não pegamos a Raul Veiga no horário do rush e chegamos bem rapidinho ao hospital.
Rapidamente, uma equipe do hospital tirou o barbudo do carro. Colocaram-no em uma maca e correram para dentro do hospital. A mulher que nos acompanhava sumiu junto com o paciente. Então, só me restou esperar notícias do bom velhinho com o saco vermelho na mão.

Sobre o Hospital das Freiras do Lagoinha

Na sala de espera, uma imagem grande de Nossa Senhora das Graças me chama a atenção. Caminho devagar até ela e fico admirando. Viajo no tempo para entender o nascimento daquele hospital tão importante para cidade de São Gonçalo.

Imagem da lagoa que deu origem ao bairro da Lagoinha, São Gonçalo-RJ. Fonte: Livro da irmandade Sagrado Coração de Jesus.

Era de interesse da Madre Superiora, Maria Antonieta, adquirir um terreno em um ambiente adequado para um convento aqui em São Gonçalo. Então surgiu a oportunidade de comprar o Sitio Lagoinha, na Estrada do Pacheco, 24, em Alcântara, o 2º distrito de São Gonçalo. Este sítio media aproximadamente 72.000 metros quadrados. Em sua entrada, uma bela pequena lagoa, que mais tarde acabou dando o nome ao bairro.
Então, a licença para a compra do sítio saiu pelo Cardeal-Arcebispo D. Jaime de Barros Câmara, no valor de Cr$ 1.100.000,00 (Um milhão e cem mil cruzeiros). Já no dia 23 de fevereiro de 1955, as irmãs instalam-se na casa de residência do sítio.

Imagens da construção. Fonte: Livro da irmandade Sagrado Coração de Jesus

Logo foi chamada de Casa Nossa Senhora das Graças pois, para sua aquisição, foi escrita uma carta a um grande incentivador à devoção em Nossa Senhora, o padre Antônio Ribeiro, com o título “das Graças”. Cinco dias depois de se instalarem, já foi celebrada a primeira missa em uma capelinha, propositalmente preparada pelo então responsável pela paróquia de Alcântara, o padre Érico Wort. A capelania da casa foi entregue aos Missionários do Sagrado Coração de Jesus.

Fonte: Livro da irmandade Sagrado Coração de Jesus

Em 2 de dezembro de 1955, começou a funcionar o Serviço Maternal e Infantil, um ambulatório visando dar assistência médica, religiosa e social às mães pobres e seus filhos. Com a grande quantidade de atendimento foi preciso construir um novo ambulatório e uma maternidade. O serviço encerrou suas atividades no ano de 1974. Em seu lugar, surgiu o Hospital Franciscano Nossa Senhora das Graças.

Voltando ao Papai Noel…

– O senhor esta esperando notícias do Senhor Sebastião? – Uma jovem freira alta com um sorriso gentil interrompe meus pensamentos.
– Sebastião? Indago sem saber quem é.
– Sim. O senhor Sebastião é o nome do Papai Noel que foi hospitalizado.
– Como a senhora sabe que estou esperando notícias dele?
Ela não fala nada, apenas inclina um pouco a cabeça e fixa os olhos em direção ao saco vermelho que eu segurava nas mãos.
– Ah, sim. Sou eu mesmo. Me chamo Alex. E como ele está?
– Está ótimo, foi apenas um susto que pregou em todos nós. Ele faz questão de falar com você e é por isso que vim até aqui para avisa-lo. Dentro de 5 minutos ele terá alta médica. Enquanto aguarda fique na excelente companhia de Nossa Senhora.
– Muito obrigado.
Enquanto a freira se afastava, me viro para a imagem de Nossa Senhora e, novamente, recomeço de onde parei na minha viagem ao tempo.

Capela. Fonte: Livro da irmandade Sagrado Coração de Jesus

Não ficou apenas no convento e no hospital das freiras. As irmãs franciscanas criaram em 1964, a Escola da Casa Nossa Senhora das Graças, pelo insistente pedido da Irmã Maria Lúcia. No inicio, apenas o curso de alfabetização. Depois, jardim de infância. Em 1986, foi reconhecida pelo MEC oficialmente como Escola Nossa Senhora das Graças de 1º a 4º série. Hoje o colégio também é conhecido popularmente como o “colégio das freiras”, com ensino até o 9º ano do fundamental.
Em 20 de dezembro de 1970, foi inaugurada a nova casa com a sua belíssima capela no estilo modernista.
-Então o senhor é responsável por salvar o Natal?
Já não estava mais caracterizado, mas era o mesmo barbudo e sem o traje aparentava ter uns 60 anos de idade.
-Eu? Não fiz nada.
-Claro que fez. Você e dona Isabel salvaram o meu Natal quando me tiraram de Alcântara e me trouxeram ao hospital das freiras. O médico disse que se demorasse mais um pouquinho eu não comeria rabanada esse ano.
– O mais importante que agora o senhor esta bem.
Sebastião me explicou que fazia um bico de Papai Noel para melhorar o orçamento doméstico, já que seu salário de aposentado não é muito, e com esse dinheirinho a mais poderia ajudar a sua família a ter um Natal melhor. Se pudesse, daria um Tablet para sua netinha de 13 anos.
Ficamos conversando por horas. Antes de me despedir, lhe entreguei o saco que guardei com sete chaves. Sebastião me deu um abraço que valerá por qualquer presente de Natal que pudesse ganhar.
Sebastião pode não ter cumprido a missão de ajudar a família com a renda extra de Papai Noel. Pode não ter dado o presente de Natal que esperava para sua neta. Mas o maior presente que ele poderia dar é estar vivo. E isso ele conseguiu dar à sua família nesse Natal.
Sim, Sebastião é um bom velhinho.
FELIZ NATAL PARA TODOS!
Curiosidades
1. O bairro de Alcântara homenageia o imperador brasileiro Dom Pedro de Alcântara (D. Pedro II).
2. Em 1984, políticos locais e o jornal “O Alcântara” se mobilizaram para a realização de um plebiscito, que tramitou pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro e se concretizou em 1995. Não houve êxito, pois, apesar de uma votação expressiva a favor da emancipação, esmagadora parte dos eleitores da região interessada não compareceu às urnas.
3. Nos anos 70 houve doações para o Hospital das Freiras. O Arcebispo de Niterói doou 1 aparelho de Raio X e 1 gabinete dentário.
4. Com auxílio da MEMISA (Holanda) foram adquiridos 1 mesa cirúrgica, 1 autoclave, 1 lâmpada de teto com 5 focos, 1 lâmpada auxiliar, armários e instrumental cirúrgico.
5. Durante a construção da Casa Nossa Senhora das Graças um fiel a causa doou uma geladeira, uma vaca Jersey e uma imagem de Nossa Senhora das Graças que foi instalada no meio da lagoinha e hoje esta na entrada do terreno do hospital das freiras.
FONTES 

1. Livro da irmandade Sagrado Coração de Jesus.
Texto publicado em 24 de dezembro de 2014 no Sim São Gonçalo.

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